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terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Django Livre (2012)



Tarantino é um artista fascinado pela vingança: em “Kill Bill”, acompanhamos uma exímia lutadora de kung fu se livrar da gangue de criminosos que arruinaram sua vida; em “Bastardos Inglórios”, vemos um grupo de judeus fazendo com os nazistas aquilo que meio-mundo sempre quis fazer, e um psicopata misógino prova um pouco do próprio veneno pelas mãos de um grupo de mulheres aventureiras em “À Prova de Morte”. Mesmo quando aparece apenas de figurante, a vendeta deixa sua marca forte em qualquer película tarantinesca (“Eu vou usar métodos medievais em seu traseiro!”). Agora, com “Django Livre”, ela encarna o ex-escravo homônimo transformado em caçador de recompensas, cujo dever é basicamente “matar brancos e ser pago por isso”.

Arrisco-me a dizer que “Django” exercerá, quanto ao tema, muito mais apelo a muito mais pessoas do que qualquer outro filme de Tarantino. Se uma aventura “kung-funesca” de vingança feminina ou mesmo de ódio ao nazismo são elementos limitados (nem todo mundo se importa com as loucuras da Alemanha ou com as atrocidades de sua imitação barata de Bonaparte, o Hitler), a escravidão – especificamente a promovida pelo branco europeu – mostrou sua face horrorosa em quase toda nação não-européia do mundo. Nós brasileiros, então, estamos acostumadíssimos com esse tema e, da mesma forma que muitos judeus se imaginam estraçalhando Hitler com uma saraiva de tiros de metralhadora, nós sempre nos deliciamos com a idéia de um negro (ou um grupo de negros) se voltando contra seus senhores e açoitando-os no mesmo pelourinho em que eles eram antes castigados. Nossa idolatria a Zumbi dos Palmares está aí para provar.

Sim, a história se passa nos EUA e se centra na escravidão norte-americana (muito mais horrenda que sua contraparte brazuca – não se deixem enganar pelas imbecilidades românticas e coloridas de “...e o Vento Levou”), mas o efeito é o mesmo. Portanto, será que entrega aquilo que nosso revanchismo histórico tanto deseja? Honestamente, eu não sei. Se levarmos em conta a mera contagem de cadáveres brancos, não resta dúvida que sim. Mas se a inserirmos no contexto da relevância artística, aí o resultado é muito menos empolgante do que a premissa ou os trailers deixam parecer. Pois é, eu não adorei Django; gostei com reservas. Para alguém que esperava um grande avanço desde o quase perfeito “Bastardos...”, a decepção não foi pouca: “Django Livre” está muito mais próximo dos filmes experimentais e irregulares de Tarantino (“Jackie Brown”, “Kill Bill – Vol. 2”, “À Prova de Morte”) do que de suas obras-primas maduras e avassaladoras (“Cães de Aluguel”, “Pulp Fiction”, “Kill Bill – Vol. 1” e “Bastardos Inglórios”). Terei umas boas páginas para explicar minha visão (e tentar aplacar a ira das sempre presentes tarantinetes), mas aproveito logo para resumir: “Django” sofre com um Tarantino auto-indulgente, descontrolado (ou melhor: excessivamente afoito) e quase previsível, como se fosse uma paródia de si mesmo.

“Chocolate é bom, mas demais enjoa.” Desde que despontou, Tarantino se tornou o objeto “homenageado” preferido de cineastas amadores, cuja ignorância da verdadeira essência tarantinesca os limita a entulhar seus filmes com referências pop desenfreadamente e se esquecer de contar uma história original. Eu diria que “2 Coelhos” sofre do mesmo problema, mas não creio que seu diretor tivesse apenas Tarantino em mente quanto produzia a obra – os fãs do filme é que são particularmente insuportáveis (cada vez que alguém diz que “2 Coelhos” é melhor que um filme de Tarantino, um cinéfilo vira homem-bomba e explode um multiplex lotado). Agora, novamente, parece que o próprio diretor perdeu o tato com a produção e termina se parodiando, entregando-nos aquele que talvez seja seu filme mais lotado de referências, homenagens e elementos pop (pois é, batendo mesmo o escandaloso “Kill Bill – Vol. 1”) e um dos menos impressionantes em termos de narrativa. É um contraste bem visível se você compará-lo com seu brilhante antecessor, “Bastardos Inglórios”.

No “European spaghetti” de Tarantino, acompanhamos três narrativas diversas (Shosanna, os Bastardos e Coronel Landa) que lentamente se convergem em um final inimaginável e bombástico. O mais estranho é que a obra não lança mão de twists forçados ou de um ritmo frenético para fazer cair o queixo da audiência: é tudo uma gradação tão calma e paciente que, quando atinge o clímax, nada mais resta à platéia senão o atordoamento. Cada núcleo dramático, não obstante, possui elementos únicos sobre os quais os personagens dos demais núcleos são ignorantes e, como num quebra-cabeças, o produto final só é completo com a união dessas partes distintas. Efetivamente, temos três grupos que, desconhecendo as trajetórias uns dos outros, caminham inexoravelmente para um desfecho quase kármico. E conseguir juntar tudo isso com uma homenagem sincera ao poder do cinema, cenas longérrimas (o bar nazista) e cultura popular é simplesmente coisa de gênio.

“Django Livre”, por sua vez, foca-se em um único personagem – seu protagonista –, trás uma narrativa linear e uma história muito menos ambiciosa: Django é liberto, passa algum tempo como caçador de recompensas (e a maior parte é retratada através de montagens), parte em busca da ex-mulher ainda escravizada, enfrenta alguns problemas com o vilão sádico que a “possui”, mas, no fim, consegue o que quer. Um tanto frustrante para quem saboreara a grandeza de filmes como “Bastardos...” ou “Cães de Aluguel”. Ora, mas “Kill Bill – Vol. 1” talvez seja ainda mais simples do que isso e eu a considero uma das grandes obras de Tarantino. Como é que pode ser?

Aí é que está: o primeiro “Kill Bill” pode ser diminuto, mas é consistente e faz um uso sábio de sua duração. “Django Livre”, por outro lado, é instável e inseguro. Se aquele era um mosaico pop assumido, este tenta ser várias coisas ao mesmo tempo e vira um poço de contradições: é uma história simples contada de forma grandiloqüente, um western típico embrulhado com referências contemporâneas (há até rap na trilha sonora!), um enredo linear que insiste em quebras desnecessárias de cronologia, etc. Não poucas vezes eu tive vontade de pular ou adiantar algumas cenas de valor puramente estético para continuar com a bendita história. E se “Pulp Fiction” conseguiu amarrar todos aqueles núcleos dramáticos com onze minutos a menos, o aproveitamento da duração em “Django Livre” fica próximo do de “O Hobbit: Uma Jornada Inesperada”.

Mesmo estilisticamente Tarantino, excitado demais para escolher apenas um tom, resolve jogar todo seu conhecimento enciclopédico no filme em detrimento da consistência. Por exemplo, peguemos a longa viagem de Django e King Schultz ao lado de Calvin Candie: neste exageradamente longo trecho de película (foi como se Tarantino quisesse levar a platéia a passeio, e me surpreendo por ele não ter incluído o trajeto inteiro em tempo real) eu perdi a conta de quantas trilhas sonoras diferentes o diretor usou (no mínimo, quatro – e duas em menos de dois minutos, ao final). Noutro momento, ele resume a vida de Django como caçador de recompensas em uma montagem pouco inspirada, que termina com um texto expositivo em créditos ascendentes e é cortada para uma exagerada introdução de Mississipi, em letras garrafais cruzando a tela da direita à esquerda. Esse descontrole “pop” seria perdoável (e desejável) em “Kill Bill - Vol. 1”, que era uma bagunça por natureza, mas em “Django” ele provoca um desagradável contraste.

Outro exemplo, e bem mais grave: durante o ataque da nascente Ku Klux Klan, o diretor inicia a cena com um plano dos membros galopando em direção a Django e Schults, e depois a corta para o passado e retrata o grupo ainda se organizando (e discutindo alguns problemas de “figurino”). Logo depois, retorna a onde parou, no “presente”. Tarantino pode ser famoso por suas quebras de cronologia, mas aqui os cortes são confusos e desnecessários, pois se trata de uma narrativa estritamente linear. Além do mais, eles se dão em cenas muito curtas e diversas e envolvem pouquíssimo espaço de tempo, deixando claro que o diretor está preterindo a concisão em nome do exibicionismo estilístico – algo bem grave para alguém que praticamente reinventou a técnica. Ainda na mesma cena você perceberá que ele faz uso de um humor pastelão que beira o infantil. O filme retrata os membros da KKK como patetas incapazes de fazer dois furos em um pano, o que não seria um problema caso, mais uma vez, não divergisse absolutamente do teor da obra. Mesmo o diálogo é bastante inferior ao que estamos acostumados com alguém do porte de Tarantino, e eu não sabia se estava achando um tanto de graça ou tentando esconder minha vergonha-alheia com alguns risinhos amarelos.

E toda esta cena, aliás, é inútil. Poderia ser descartada do filme sem qualquer prejuízo para o enredo ou o desenvolvimento de seus personagens (ela basicamente nos ensina que Django pode atirar a longa distância. Só.)

Como se a irregularidade da direção e do próprio enredo não fosse coceira atrás da orelha o suficiente, alguns dos momentos mais climáticos da obra copiam elementos de “Bastardos Inglórios”, pondo em xeque suas pretensões de originalidade. Quando Schultz elimina um dos antagonistas do filme, precedendo um grande tiroteio, o método por ele usado é quase idêntico ao que os Bastardos vestidos de garçom usaram para neutralizar os soldados nazistas nas portas do cinema, e o desfecho que Django dá a Candieland é muitíssimo similar a um dos desfechos de “Bastardos Inglórios”. Tarantino sempre se orgulhou de roubar (e ele usa exatamente este verbo) elementos de outras obras e de lucrar com o resultado (daí o apelido de “Diretor DJ”), mas fazer isso com as próprias obras não dá certo e instila no público um senso de tapeação.

Apesar de acumular problemas, ainda estamos falando de um filme de Tarantino. Ou seja, quando ele acerta... céus, como acerta! Há cenas aqui tão bem escritas (e tão bem distribuídas) que, a cada ameaça de tédio pelo ritmo inconstante, nosso humor é renovado pelas lufadas de genialidade do diretor. A discussão entre Candie, Schultz e Django na Casa Grande de Candyland é o equivalente do filme à cena do bar em “Bastardos...”: lenta, construtora de formidável tensão e se concluindo com a revelação inesperada de um segredo (pensando bem, creio que esta é mais outra autocópia do diretor - que feio!). Minha favorita é, de longe, a chegada de Schultz e Django em sua primeira cidade - seguida de uma hilária (e brutal) contenda entre ambos e o xerife do lugar. E, apesar das vacilações ocasionais, o humor deste western é afiadíssimo, talvez o segundo melhor da carreira de seu criador (não tem como superar “Kill Bill - Vol. 1” e seus membros cortados que jorram sangue com mais força e volume do que uma mangueira de bombeiro). Christopher Waltz encarna o gentil e ácido King Schultz com perfeição e supera DiCaprio em sua interpretação do estereotipicamente perverso Calvin Candie - talvez eu tenha gostado mais do vilão se ele tivesse passado mais tempo em tela ou tivesse cometido atos de verdadeira brutalidade. Pois é, da mesma forma que Django, um escravo sendo comido vivo por cachorros foi pouco impressionante.

E há mais um elogio que nunca imaginei que faria: dou meus parabéns à dublagem brasileira, que apresenta um trabalho de altíssimo nível. Por causa de circunstâncias infelizes não pude assistir à película legendada - e ainda recomendo que essa seja a prioridade de qualquer cinéfilo - e tremi, naturalmente, diante do que a típica incompetência de nossos dubladores poderia fazer com o filme - justamente um filme de Tarantino! Qual não foi minha surpresa ao ver que tudo saíra ok - na verdade, bem mais do que ok. É impressionante a conservação do linguajar culto e pomposo do doutor Schultz e das divagações pseudo-científicas do desprezível Candie (espertamente traduzidas como “crioulogia”). É um alívio tremendo finalmente ouvir palavrões em abundância, com inúmeros “c#ralhos”, “p#rras” e “p#tas” transbordando das bocas dos personagens como uma gloriosa cascata de profanação. Sim, algumas piadas foram inevitavelmente perdidas (eu fui o único da sala que riu quando Stephen confundiu o nome de Schultz por “Shitz” - “merdas”, em inglês), mas o esforço geral da tradução foi admirável - o que agora me dá a certeza de que, quando queremos fazer algo direito, não há desculpa para não fazê-lo. O bom trabalho da dublagem me fará ser ainda mais rigoroso com ela: ora, se com “Django” um grande resultado foi obtido, por que continuar tratando tantas outras obras de maneira leviana?

“Django Livre” é mais um exercício de estilo e de homenagem a terceiros do que uma obra firme e independente. Assim como “À Prova de Morte” ou “Jackie Brown” (e em maior escala que ambas), é uma produção divertidíssima, mas não marcante. Suas quase três horas, mesmo já fruto de cortes na pós-produção, parecem infladas e o descompasso de seu diretor nas referências que tanto adora fazer chega a enjoar. “Django” possui bem mais brancos morrendo pela revanche de um ex-escravo do que “Bastardos” possui nazistas nas mãos de judeus, mas é este último que carrega, digamos assim, um maior “índice de satisfação por morte”. A prova cabal de que qualquer coisa, mesmo a melhor coisa do mundo, enjoa quando em excesso.

NOTA: 7,0

2 comentários:

  1. Amo Tarantino e seu estilo exatamente pelo fascínio pela vingança.

    Adorei e concordei com seu texto. Só discordo um pouco quando diz que o filme é focado no protagonista. Tive uma visão ampla de protagonistas. Acho que o trio se uniu bem.


    MAs, visão pessoal.

    abraços

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  2. Achei um filme excelente, e nem sou tão fã de Tarantino assim. Minha humilde resenha:

    http://cinemagia.wordpress.com/2013/01/21/resenhas-django-livre/

    Um abraço
    Tommy

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